Lenir Santos
24 de junho de 2025
A história da pessoa com deficiência infelizmente é uma secular tragédia de exclusão social, preconceitos, discriminação, dificuldades, que somente há sete décadas, mais ou menos, passou a ser construída de maneira mais inclusiva, respeitosa, acolhedora, agregadora, solidária. Não pretendemos neste breve artigo descer aos detalhes sobre as imensas dificuldades individuais e sociais da pessoa com deficiência sob os mais variados aspectos, como religiosos, morais, culturais, todos excludentes por considerá-las incapazes de prover a sua própria subsistência ou por diferirem estética, funcional e intelectualmente das demais pessoas, ao ponto de vinculá-las às forças do mal. Séculos de penumbra, de desvalorização da vida, dos sem-direitos, excluídos da vida familiar, comunitária e social. Pessoas desprovidas de sua dignidade.
A grande virada no que diz respeito aos direitos das pessoas de modo geral foi no pós Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, que passou a reconhecer os direitos naturais de todas as pessoas – direitos que nascem e morrem com cada ser humano. Entretanto, para as pessoas com deficiência, o preconceito permaneceu nas mentes e corações das sociedades por longo tempo, com tímidas mudanças sociais e morais a lançarem novos olhares para os seus direitos e a sua dignidade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos levou alguns países a positivar em seus ordenamentos jurídicos normas garantidoras de direitos individuais e coletivos, como os da liberdade, da dignidade, da igualdade, da liberdade religiosa, até então não reconhecidos.
Voltando o olhar para o Brasil, podemos dizer que foi a partir dos anos 1960/70, que a sociedade e os governos passaram a reconhecer direitos das pessoas com deficiência, ainda que timidamente, com alguns programas públicos e de entidades sem fins lucrativos.
Contudo esses programas, quase todos, se inseriam no campo da assistência social, que tem a finalidade de prover mínimos existenciais àqueles que deles necessitem, confundindo direitos sociais com assistencialismo. Aliás, a visão assistencialista do Estado, tanto quanto da sociedade em relação à pessoa com deficiência, sempre esteve presente nos programas de proteção social, sem que o respeito às diferenças e singularidades de cada um fosse a premissa de sua proteção, com reconhecimento de direitos iguais, sem discriminação e preconceito.
Os programas voltados para a pessoa com deficiência sempre eram de cunho assistencialista e não de garantia de direitos. No Estado de São Paulo, o que se repetia em muitos Estados, havia o Fundo de Solidariedade Social (sob a administração da primeira-dama), no qual se inseriam os programas de proteção à pessoa com deficiência, não importando se carente ou não. Todas consideradas merecedoras de programas de cunho assistencialista e não de cidadania.
Até 1989 pouca ou quase nenhuma entidade de pessoa com deficiência tinha espaço nos programas públicos de educação, saúde, cultura etc. Nesse ano de 1989, a Fundação Síndrome de Down, questionou esse estado de coisa e requereu ao Secretário de Estado da Saúde o direito de participar complementarmente do SUS prestando serviços às pessoas com síndrome de Down, nos termos do § 1° do artigo 199 da Constituição Federal. O pedido, que foi deferido, permitiu à Fundação participar do SUS paulista, mudando o cenário de que entidades de pessoas com deficiência, especialmente intelectual, somente estavam ao amparo da assistência social prevista na Constituição Federal, em seu artigo 201 da CF, que prevê a garantia de mínimos existenciais em nome da dignidade da vida.
Isso tudo para dizer que mesmo sob a égide da Constituição de 1988 ainda prevalecia, no âmbito do Poder Público e da sociedade também, vieses sobre a atenção à saúde das pessoas com deficiência, dentre elas, as com síndrome de Down.
No ano de 1992, ainda durante a existência do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), extinto em 1993, foi editada a Portaria MS/SAS n° 303, dispondo sobre o atendimento da pessoa com deficiência em leitos ou unidades de reabilitação em hospital geral, com a edição em 1993, da Portaria MS n° 304, de 1993, estabelecendo regras sobre o atendimento ambulatorial dessas pessoas. Foram ainda publicadas, na sequência, portarias para regulamentar medidas para a concessão de órteses, próteses, inclusão no sistema de informações, implante coclear, dentre outras.
Em 2001 foi editada a Portaria n° 818, definindo diretrizes para a criação das Redes Estaduais de Assistência à Pessoa com Deficiência Física, ano em que foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal (Portaria MS n° 822).
Em 2002, foi regulamentada regras para que a pessoa com deficiência intelectual e autismo pudessem ter acompanhantes em suas internações hospitalares (Portaria MS n° 1.635). Ainda em 2002 foi criada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Pessoa com Deficiência (PNAISPD) e as redes de cuidados (RCPD), no âmbito do SUS.
A referida Portaria foi alterada, sendo a sua última versão, a Portaria GM/MS n° 1.526, de 2023. Seu objetivo é promover e proteger a saúde da pessoa com deficiência mediante a ampliação do acesso ao cuidado integral no SUS, em articulação às demais políticas e ações intersetoriais, contribuindo para a autonomia, qualidade de vida e inclusão social, bem como prevenindo diferentes agravos à saúde em todos os ciclos de vida. Essas são as principais políticas públicas federais de saúde voltadas para a pessoa com deficiência, devendo ser ressaltado que os cuidados de saúde da pessoa com síndrome de Down tem diretrizes específicas.
Há ainda a importante Lei n° 12.715, de 2012, que criou em seu artigo 3° o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência - PRONAS/PCD com a finalidade de captar e canalizar recursos destinados a estimular e desenvolver a prevenção e a reabilitação da pessoa com deficiência, incluindo-se promoção, prevenção, diagnóstico precoce, tratamento, reabilitação e indicação e adaptação de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção, em todo o ciclo de vida.
Nesse sentido, voltando aos anos 90 e para a síndrome de Down especificamente, foi editada uma cartilha no Ministério da Saúde sobre a pessoa com síndrome de Down, que contou à época com a colaboração da Fundação Síndrome de Down. Nos anos 2.000 foram estabelecidas diretrizes de atenção à saúde da pessoa com síndrome de Down, sendo a sua última edição datada de 2023, com o objetivo de oferecer orientação às equipes multiprofissionais para o cuidado da pessoa com síndrome de Down, nos diferentes pontos de atenção da rede de serviços, ao longo do seu ciclo vital.
Há muitas outras cartilhas e publicações, tanto públicas como privadas, todas de utilidade pública, sobre cuidados com a saúde da pessoa com síndrome de Down, e atualmente sobre o transtorno do espectro autista (TEA), que a partir da Lei n° 12.764, de 2012, que aprovou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, tem sido muito destacado.
O importante a considerar é que a grande mudança ocorrida na garantia dos direitos das pessoas com deficiência foi na Constituição de 1988, ao prever direitos sociais, dentre eles, o da saúde, educação, trabalho, assistência social, cultura, lazer. Lembramos que o direito à saúde é de acesso universal e igualitário, sendo considerados dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que evitem o risco de agravo à saúde e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.
Nesse sentido, cumpre destacar que a Convenção da ONU de 2008 sobre a proteção dos direitos das pessoas com deficiência, ratificada pelo Brasil e introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n° 6.949, de 2009, com status de norma constitucional, e a Lei Brasileira de Inclusão, Lei n° 13.146, de 2015, são os mais importantes marcos legislativos no Brasil para a garantia dos direitos das pessoas com deficiência e seus direitos, especificamente, os da saúde.
Mesmo que, a partir de 1988, os avanços na garantia dos direitos à saúde tenham sido fortalecidos com a criação do SUS e a elaboração de políticas para a pessoa com deficiência, não se pode deixar de lembrar dos atrasos quanto a essas garantias no mundo real, o que exige permanente monitoramento e avaliação dos seus resultados, uma vez que ao menor descuido, há medidas que retrocedem entendimentos.
Além do mais, o subfinanciamento crônico do SUS, que tem impacto real sobre a concretização das políticas de saúde, certamente afeta os serviços de saúde destinados às pessoas com deficiência. Importante ainda ressaltar que a síndrome de Down, também identificada como trissomia do 21, não se constitui como uma doença em si mesma, mas sim uma condição genética, que pode sim conter probabilidades de desenvolvimento de determinadas doenças.
Por isso é importante a vigilância quanto a se considerar que a pessoa com síndrome de Down é uma pessoa “doente” que necessita de permanente “tratamento” ao lado de não se descuidar da necessidade de estímulo a estudos, pesquisas e medidas de prevenção em razão de algumas vulnerabilidades biológicas.
Ainda que desde o seu nascimento seja importante proceder a avaliações biopsiquico-sociais, entendê-la como uma pessoa doente, merecedora de tratamento em tudo o que faz, limita a sua condição de vida e o seu desenvolvimento físico, mental, psicológico, social, sendo pois uma visão excludente. Mesmo que a pessoa com síndrome de Down possa ter tendência a ser afetada por alguns males mais pronunciadamente que as demais pessoas, isso não a torna uma pessoa doente. Ela é pessoa como qualquer outra, com agravos em sua saúde que podem ser episódicos ou até mesmo crônicos, merecedora de medidas preventivas.
Por conclusivo, pode se dizer que o SUS é um sistema de grande importância para a população brasileira em geral e especificamente para as pessoas com deficiência, e mais especialmente para as pessoas com síndrome de Down e que as políticas e programas do SUS são extremamente relevantes, mas requerem permanente vigilância, monitoramento pelas entidades de defesa e proteção dos direitos das pessoas com deficiência para que a sua qualidade seja real e o acesso seja de fato para todos e todas.
1 A Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos como documento base, não jurídico, de proteção dos direitos e liberdades universais.
2 A assistência social prevista no art. 201 e seguintes da CF destina-se a garantir mínimos existenciais a quem deles necessite, independentemente de contribuição social, sendo uma essencial medida de proteção social às pessoas carentes com deficiências.
3 A Fundação Síndrome de Down é uma entidade sem fins lucrativos criada na cidade de Campinas, SP, em 1985, cuja finalidade é promover o desenvolvimento integral da pessoa com síndrome de Down.
4 As proteções previstas no art. 201 da CF destinam-se, todas elas, as pessoas consideradas carentes, pobres, em condições de vulnerabilidade econômico-social.
5 O Ministério da Saúde deu um passo atrás ao encaminhar todos os pedidos de concessão do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) das entidades que prestam serviços de saúde às pessoas com deficiência, ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, retomando o retrógrado entendimento de que entidades voltadas para a garantia de direitos das pessoas com deficiência em geral ,estão no âmbito da competência da assistência social, nos termos do art. 203, IV da CF, o que é uma visão capacitista das pessoas com deficiência.
6 Há publicações de saúde sobre as mais diversas deficiências, contendo orientações específicas.
Lenir Santos
Advogada sanitarista, especialista em direito sanitário pela USP, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, pós-graduação, e atual presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, Idisa, vice-presidente da Fundação Síndrome de Down e da Federação Iberoamericana Síndrome de Down, Fiadown.